mercado bilionário "apostas" desvia recursos do consumo e cria crise de dívida e saúde mental no Brasil

Não regulamentadas no Brasil desde 2018, as apostas esportivas online criaram um mercado bilionário no país por meio de uma enorme presença na televisão e nas redes sociais, mas o dinheiro gasto nos chamados “contratos” gerou dívidas e problemas de saúde mental. nas famílias e nos setores afetados da economia, como consumo e poupança, segundo estudos e pesquisas.

A conta é cara. Estudo realizado pelo Itaú mostrou que os brasileiros perderam 23,9 bilhões de reais em apostas esportivas entre junho de 2023 e junho deste ano, o que atinge principalmente os mais pobres. Segundo o estudo, as apostas nesse período geraram um faturamento total de cerca de 68,20 bilhões de reais no país.

As apostas esportivas no Brasil foram lançadas em dezembro de 2018, com a expectativa de que a regulamentação ocorresse no prazo máximo de quatro anos, o que não aconteceu. No ano passado, o Congresso aprovou a primeira parte do regulamento enviado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e a segunda fase entrará em vigor em outubro, com as regras de funcionamento definidas pelo Ministério da Fazenda.

As empresas de apostas cresceram em todo o país desde o seu lançamento em 2018, mas depois da Copa do Mundo de 2022, o investimento no setor realmente aumentou no Brasil.

No último ano, com a perspectiva de regulamentação, grandes sites internacionais entraram no país em cooperação com empresas brasileiras, gastando pesadamente em publicidade, incluindo patrocínios em praticamente todos os clubes de futebol de elite do país, exceto nos principais campeonatos.

O regulamento estipula que as empresas de apostas que operam no Brasil devem estar presentes no país e ter parceiro nacional, entre outros requisitos, como o pagamento de outorga. O governo estabeleceu prazo para inscrição dos interessados ​​e recebeu 113 inscrições até 20 de agosto.

Empresas como MGM Resorts International, Betfair, de propriedade da Flutter Entertainment, Betsson AB da Suécia e a maior empresa de cassino e entretenimento dos EUA, Caesars Sportsbook, estão entre as que solicitaram o registro, disse Regis Dudena, secretário do Ministério Prêmios e Apostas. . financiar

O cálculo que o governo faz é que apenas nas outorgas para autorização da atividade a receita poderia ser de até 3,4 bilhões de reais, excluindo os impostos que as condições estabelecidas arrecadam do erário público.

Porém, ao mesmo tempo em que promete trazer mais investimentos e recursos aos cofres públicos, há sinais de que as casas de apostas estão tirando dinheiro da economia real.

O relatório do Santander mostrou que a partir de 2018 o percentual da renda familiar gasto em apostas estava entre 0,8% e 1,9% e, segundo estimativas baseadas em dados do Banco Central, poderia chegar a 2,4%.

Ao mesmo tempo, o dinheiro destinado às compras no varejo, incluindo alimentos, roupas, móveis, eletrônicos, produtos de beleza e remédios, entre outros, perdeu espaço. De um pico de 63% em 2021, caiu para 57% em 2023.

Outros estudos realizados com consumidores mostram que os brasileiros parecem ter recursos oriundos dos gastos regulares e do mercado consumidor para investir em jogos de azar. Um deles, realizado em maio pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, mostrou que 63% dos entrevistados afirmaram ter perdido parte de sua principal renda com jogos de azar, 23% com compras de roupas, 19% com compras em supermercados e 11% com compras em supermercados. parou de pagar a conta.

As empresas de apostas online contestam o impacto das apostas no consumo, afirmando que a queda foi causada pela pandemia de Covid-19, que manteve as pessoas em casa durante dois anos.

“O setor varejista usa as apostas como bode expiatório”, disse o advogado Luiz Felipe Maia, que representa dezenas de empresas de apostas no Brasil. Ele ressaltou que uma das garantias da lei regulamentadora aprovada em 2023 é a proibição do uso de cartão de crédito nas apostas.

RENDA DE RESPONSABILIDADE

Uma pesquisa realizada pela Federação de Mercadorias, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP) na cidade de São Paulo mostrou que 41% dos entrevistados desviam para apostas dinheiro que antes era usado em outros tipos de entretenimento. . Mas 20% usaram as poupanças que iam pagar as contas, e outros ainda deixaram de poupar dinheiro, de comprar comida ou roupa para brincar.

“O que é muito preocupante é que 25% jogam porque esperam obter lucro rápido e 9% para investir. Hoje, o endividamento das famílias está controlado, mas isso pode ter um impacto a médio e longo prazo no rendimento destas famílias, “, disse à Reuters a economista Kelly Carvalho, assessora técnica da Fecomércio-SP.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva no início de agosto mostrou que 79% dos apostadores questionados eram das classes C, D e E, 86% deles estavam endividados e 64% tinham má reputação. São essas pessoas, Renato Meirelles, presidente do instituto, que veem nas apostas uma forma de saldar dívidas e obter rendimentos financeiros, num negócio onde o lucro vem justamente das perdas do apostador.

Com base em pesquisas qualitativas, Meirelles observa que uma fração do dinheiro que vai para as apostas é maior do que o que é usado para consumo. Não necessariamente as necessidades básicas, mas os extras – iogurte, pizza nos finais de semana.

“É o dinheiro que faz a economia crescer de baixo para cima, e é dinheiro novo porque não estava no consumo, também está sendo comido pelas apostas e pode ir diretamente para a economia”, disse Meirelles.

A PriceWaterhouse Consulting realizou um estudo com base em dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE e aponta que os gastos com apostas aumentaram de 0,2% em 2018 para 0,7% no ano passado e já representam 38% dos gastos com entretenimento e cultura.

“Apostar não é um gasto planejado. Começa como um passatempo com expectativa de lucro, e depois traz prejuízo. E esse prejuízo acaba às custas de recursos que vão para outras coisas. Perdem compras exclusivas, como cultura. e entretenimento, cuidados pessoais, até roupas, as pessoas não param de comer, mas rebaixam marcas”, explica Mauro Toledo, diretor da Strategy&, consultoria PriceWaterhouse Brasil.

Toledo também questiona os recursos que a regulação supostamente traz para a economia. Apesar de pagar impostos e taxas pelas apostas, ele lembra que a maioria das empresas está localizada fora do país e o único investimento que realmente se vê é o feito em marketing e publicidade.

“Não vemos nenhum outro investimento que permaneça na economia”, diz ele. Mesmo com as regulamentações e a obrigação de ter um parceiro brasileiro, porém, como a maioria das empresas está online, o crescimento do emprego, por exemplo, no Brasil tende a ser pequeno.

“EU DEIXO DE VIVER”

Diego, que falou com o repórter sob condição de anonimato, admite que na verdade seu consumo diminuiu e suas dívidas de apostas aumentaram. O resultado final é que ele perdeu cerca de 50 mil reais em apostas e ainda está pagando dívidas de 30 mil reais para acertar as contas.

Aos 38 anos, o operador automóvel considerou as apostas como uma forma de investimento quando foi apresentado às apostas desportivas em 2021 por um amigo. Por não acompanhar esportes, recorreu aos cassinos online, conhecidos como slots.

“Ganhei muito dinheiro, dinheiro que nunca vi antes, mas depois não vou ganhar de novo. Perdi todo o dinheiro que ganhei na roleta. Entrou dinheiro, não consegui parar e apostar até o resultado, caí nas contas principais e no cartão de crédito”, lembra.

Diego fez um empréstimo para saldar a dívida, mas continuou jogando. Ele usou o FGTS, perdeu todo o dinheiro das férias em um dia. Quando sua esposa descobriu isso, ele parou, mas aconteceu de novo. Ele faz psicoterapia, participa de reuniões de Jogadores Anônimos e toma remédios.

“Hoje sei que, se entrar apenas uma vez, não consigo parar o jogo até que chegue a zero novamente”, diz ele. “Praticamente parei de viver. Não fazia caminhadas, não comprava roupas, não viajava. O que mais me afetou foi a falta de dinheiro e a distorção de caráter. Você mente, você se esconde. É vício. É a pior coisa que você pode fazer”, diz ele.

Se nem todos os apostadores se tornarem viciados, o impacto na saúde mental e nas contas familiares é um facto. Grupos de apoio aos viciados em jogo já estão a espalhar-se nas redes sociais e as preocupações chegaram ao Ministério das Finanças. A regulamentação, que só entrará em vigor em janeiro, foi proposta, e as empresas que não solicitassem a regulamentação teriam que encerrar as operações apesar da cobrança de impostos e taxas do ano seguinte.

Ao fazer o esperado anúncio, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que as apostas estavam se tornando um sério problema social com o qual o governo teria de lidar.

“(A expectativa de regulamentação) está com a pandemia que está acontecendo no país e temos que enfrentar a questão do vício psicológico em jogos”, disse.

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